O regresso a Miranda do Douro é sempre uma festas.
Desta vez cheguei um pouco depois das festas da
cidade, quando se aplica a expressão “apanhar as
canas”, mas já nem os foguetes usam canas!
No dia 27 de Agosto fiz um longo passeio pedestre ao
Santuário de Nossa Senhora do Nazo.
Possivelmente seria mais agradável de bicicleta, mas
não tinha bicicleta.
Habituado a planear os percursos ao pormenor, com a ajuda da
Internet, senti-me um pouco limitado, pois também
não tinha Internet. Decidi tentar acompanhar
parcialmente o percurso seguido no dia
6 de Setembro de 2004,
num passeio organizado pela Câmara Municipal.
Saí de casa pouco depois das 8 horas. Não tinha muitas
certezas quanto às distâncias, nem se encontraria
facilmente os caminhos. Já várias vezes me perdi
entre a Póvoa, Malhadas e o
Palancar, nos meus passeios de bicicleta.
Dirigi-me ao centro da cidade e parti pela N542 em direcção a
Pena Branca. Pouco depois de atingir os 700
metros de altitude, deixei a estrada e segui por um
caminho em direcção ao Palancar.
Estava contente, pois sabia estar a seguir o caminho certo. A
calma era total. O céu estava quase completamente
limpo embora pouco luminoso. Às nove horas da manhã,
os sons dos campos mal se faziam ouvir. Algumas
boiadas mirandesas
dirigiam-se para os pastos, com aquele passo calmo
típico do planalto nos meses de Verão. As aves mal
se mostravam. Ao longe ouvia-se um ou outro
pombo-torcaz e os tralhões apanhavam todos os
insectos que ousassem mexer-se na erva pastel dos
cerrados.
Pouco depois esbarrei com o casario do
Palancar.
Passava pouco das nove da manhã e só as galinhas
correndo, me saudaram à chegada. O sol já aquecia
casas e ruas, tentando dobrar as verduras das
hortas, ansiando humidade.
Encontrei uma idosa, perguntei-lhe pelo caminho para a Póvoa.
– Pruôba? Corrigiu ela – num tem nada que enganhar.
Segui satisfeito, respirando o ar fresco. Nas margens do rio
Fresno havia bonitas hortas. No meio das cebolas e
dos feijões, tratadas com o mesmo carinho, havia
cércias floridas
das mais diversas cores. Um senhor regava as
cebolas. Meti conversa com ele e tive direito a uma
lição gratuita de língua mirandesa: cebolha,
riestra, berças e freijon. Para
a alface não temos palavra – dizia-me com algum
desgosto.
Entrei depois numa fase de tranquilidade. O céu não se abriu
como esperado, mantendo um azul algo diluído em
neblinas renitentes. Os lameiros murados de pedra
miúda, com cores pálidas de palha, não disfarçavam a
sua vergonha à vista dos salgueiros engalanados de
verde. Mas também estes mostravam já ligeiras
dentadas do Outono. Em breve, todas as folhas vão
cair, trocando o seu verde com os tons palha da
erva.
Em resposta ao céu pardacento, optei por fotografar a preto e
branco. Sem pressas, eram já onze horas e meia
quando me abeirei da
Póvoa. A
aldeia das cruzes,
como lhe chamo dado o elevado número de cruzeiros
que há na aldeia e pelos caminhos do seu termo. Já
foi alvo de muitas visitas minhas. Desta vez, a
minha atenção centrou-se na igreja. As cércias das
hortas lá estavam, enfeitando a casa de Deus. Mas
havia também gladíolos e dálias. A rusticidade das
pessoas transfigura-se no seu gosto pela suavidade
das flores e pela sua forte ligação ao divino. Na
Póvoa, o divino está em toda a aldeia culminando
no Santuário de Nossa Senhora do Nazo, para
onde me dirigi.
Seguindo pela estrada, a progressão era mais fácil, mas o meu
sistema locomotor denotava já algum desgaste. Não
tinha problemas de água, uma vez que havia enchido
todas as garrafas na Póvoa.
Esta estrada da Póvoa ao Nazo, traz-me à
memória muitas recordações. Percorri-a várias vezes
acompanhado de centenas de crianças, em passeios
escolares. Tenho a certeza que muitas destas
crianças, nunca mais vão palmilhar estes caminhos
mas deles vão guardar recordações felizes.
No santuário de Nossa Senhora do Nazo faziam-se já
obras para a grande festa, a realizar nos dias 6,7 e
8 de Setembro. A capela estava fechada, só me restou
sentar-me à sombra a descansar os pés, enquanto
saboreava o “almoço” que carregava na mochila.
Imaginei a feira, a música, os devotos pagando
promessas aos pés da Virgem. Deste lugar,
ligeiramente elevado em relação ao planalto, passei
os olhos pelo horizonte comparando-o
inconscientemente com o horizonte onde costumo
descasar os olhos, por terras de
Vila Flor. Não tinho o cabeço da Senhora
da Assunção, ou a Serra de Bornes, para
me guiarem à distância, mas via ao longe, no alto de
uma colina a pequena capela de Nossa Senhora da
Luz, ponto mais alto de todo o concelho de
Miranda do Douro.
Pela uma e meia da tarde comecei o caminho de regresso. Ainda
me apetecia visitar o lugar do Picão, mas os
meus pés já estavam em péssimo estado, tinha que
gerir muito bem o esforço, para conseguir chegar a
Miranda.
Andei alguns metros pela estrada N544 mas depois entrei por
um caminho, à esquerda, que me conduziu à aldeia de
Malhadas. O calor era muito e a progressão
lenta. Entrei numa fase em que as fotografias pouco
apetecem, concentrando-se o esforço em caminhar
simplesmente. No entanto, fui aproveitando para
fazer alguns registos das paredes dos lameiros, dos
poços, dos bebedouros, de alguns burros que
encontrei à sombras das árvores e também algumas
vacas. A maior parte do
gado bovino que
encontrei não era de Raça Mirandesa!
Parece-me que esta raça, pode correr sérios riscos
de desaparecimento, se nada for feito.
Já esgotado, no limite da minha resistência, cheguei a
Malhadas. Desci pela aldeia em direcção à
igreja. O seu aspecto tosco, lembra-me uma tartaruga
quando a olho do lado virado a sul. A porta estava
aberta, mas realizava-se no seu interior uma
cerimónia religiosa que achei por bem não perturbar.
Continuei a minha caminhada até à capela de S. Sebastião.
Aproveitei para descansar um pouco e para me
reabastecer de água, para enfrentar o calor
abrasador dos últimos quilómetros do percurso.
A partir de Malhadas segui pela estrada N218 até às
primeiras casas da cidade. Conhecia alguns caminhos
alternativos, mas a vontade de parar era tanta, que
se sobrepunha a qualquer resquício de vontade de
partir À Descoberta.
Perto das dezassete horas, entrei em casa. Esqueci as agruras
dos quilómetros, guardei em formato digital centenas
de “quadros” pintados com as cores mais
características do Planalto Mirandês, para mais
tarde recordar. Alguns, vou partilhá-los, outros,
vou guardá-los como caminhos que os meus olhos
percorrerão sempre que me apeteça viajar por
Terras de Miranda.
Aníbal Gonçalves